É preciso pensar seriamente - com um pingo de juízo crítico - o que significa a aprovação da Resolução 1973 do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (que autoriza o uso da força na Líbia com base no Capítulo VII da Carta da ONU).
O mundo vive novamente um momento crítico e decisões legitimadas a partir de argumentos de retórica como a salvaguarda dos direitos humanos estão sendo tomadas para defender os interesses políticos e econômicos das potências ocidentais.
O mundo vive novamente um momento crítico e decisões legitimadas a partir de argumentos de retórica como a salvaguarda dos direitos humanos estão sendo tomadas para defender os interesses políticos e econômicos das potências ocidentais.
Brasil, Alemanha, China, Russia e Índia se absteram da votação, mas não questionaram as motivações imperialistas por trás da articulação política da ONU. A Embaixadora Maria Luísa Viotti, em sua intervenção na reunião do dia 17/03, somente declarou que "estamos também preocupados com a possibilidade de que tais medidas tenham os efeitos involuntários de exacerbar tensões no terreno e de fazer mais mal do que bem aos próprios civis com cuja proteção estamos comprometidos. Muitos analistas ponderados notaram que importante aspecto dos movimentos populares no Norte da África e no Oriente Médio é a sua natureza espontânea e local. Estamos também preocupados com a possibilidade de que o emprego de força militar conforme determinado pelo OP 4 desta resolução hoje aprovada possa alterar tal narrativa de maneiras que poderão ter sérias repercussões para a situação na Líbia e além".
A questão é delicadíssima e preocupante. Caso o Brasil votasse contra a Resolução, seria taxado pelos outros Embaixadores e pela mídia internacional de ser uma nação "anti-direitos humanos". E essa imagem nós não queremos para nossa recente democracia, não é mesmo? Outro ponto seria estratégico: iríamos comprar essa briga porque? Brigar com os grandes justo agora que Barack Obama veio ao Brasil propôr crescimento econômico conjunto?
Em suma: o Brasil foi cooptado pelo discurso dos direitos humanos.
E o engraçado é a forma como a mídia trata a questão. O Jornal Nacional - reconhecido veículo de comunicação com o povo brasileiro -, por exemplo, exibiu uma matéria de cinco minutos para explicar o que está acontecendo na Líbia através da velha forma midiática importada da CNN: a diabolização do "ditador" do momento para justificar a agressão militar.
Mas os fatos são bem mais complexos e indicam um retorno ao imperialismo neocolonial. A operação "Odyssey Dawn" esconde os verdadeiros motivos da intervenção líbia, que não são mistérios para ninguém. A história se repete: cria-se o discurso (se constrói a imagem do inimigo) e legitima-se a intervenção bélica sem maiores tumultos. Noam Chomsky deve estar realmente frustrado por ter escancarado esse esquema cínico do imperialismo por anos e anos (em palestras, discursos e textos) e ninguém dar a mínima.
O mundo pensa que o que está acontecendo no norte da África é uma coisa só, uma admirável e orgânica manifestação pró-democracia, mas não é. O que ocorreu na Tunísia difere do que aconteceu no Egito, que difere do que está ocorrendo na Líbia, no Iêmen e no Bahrein.
A intervenção, de fato, embaralhou as cartas da revolução árabe. Como escreveu Bruno Cava (no excelente texto chamado "O Império Enquadra a Revolução"), a intervenção militar na Líbia quebrou o seu encanto: "Passou o momento romântico e febricitante, que na Praça Tahrir condensava seu devir revolucionário. Enganou-se quem avaliava que a atmosfera geopolítica dos anos 2000 e seu discurso guerra & democracia estava superada com a eleição de Obama e a falência do neoliberalismo". Arremata ele, alertando para o que está por vir: "cinicamente, vestida de humanidade e altos princípios, a ordem imperial continua operando no capitalismo mais perverso, o que depende da guerra. Os senhores da contrarrevolução não mais hesitarão em rugir seus canhões: o mais barulhento dos argumentos. Daqui por diante, a revolução é morro acima".
O discurso é realmente repleto de cinismo. Como bem apontou Andrea Catona da revista italiana L'Ernersto, "os mesmos que apregoam a urgência da guerra humanitária contra a Líbia, que dizem ser impossível adiar para amanhã, nem sequer levantaram a voz para deplorar a violência que Israel desencadeou entre Dezembro/2008 e Janeiro/2009 contra a população de Gaza, prisão a céu aberto para os palestinos, e que causou milhares de vítimas. Tão pouco preocuparam-se com a violência mortífera dos governos do Bahrein e do Iêmen, ou da Arábia Saudita (um Estado que ostenta o nome de uma dinastia!) quando intervém com as suas tropas contra manifestantes. São estas mesmas petro-monarquias – dos emirados à Arábia – de mãos com os Estados Unidos, que enviam armas e tropas aos insurrectos contra Kadafi. Os quais – seja qual for a sua consciência subjetiva (dentre eles encontramos antigos ministros e altos funcionários da Jamahiriya) – são o instrumento de que se servem as forças imperialistas para por a pata sobre o país, não só pelos seus importantes recursos energéticos como também pela sua posição geográfica para o Mediterrâneo e para a África".
Março de 2011, mutatis mutandis, repete o ocorrido em Março de 1999, quando a OTAN invadiu Kosovo por razões humanitárias e inaugurou um novo tipo de intervenção "legítima" no Direito Internacional, a "intervenção humanitária". Alguém se lembra desse trágico episódio?
Felizmente, Chomsky nos ajuda a lembrar a história recente. No caso da Sérvia, a "nova ordem internacional" tratou de atribuir-se legitimidade para agir em nome da "comunidade das nações", usando a força sempre que considerasse adequado e em obediência às "modernas noções de justiça". O ataque chomskyano é ácido e direto: são as grandes potências ocidentais, mais do que tudo através da OTAN, que praticam crimes internacionais (genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra), sob o manto de construção da democracia e de respeito aos direitos humanos.
Afinal, que momento é esse que o mundo vive no pós-Guerra Fria?
Na opinião do professor belga Jean Bricmont, trata-se do Impérialisme Humanitaire. Tal imperialismo humanitário baseia-se na utilização do discurso retórico dos direitos humanos para promover a guerra e eliminar "potenciais Hitlers". Essa foi a conclusão de Bricmont a partir do estudo de caso de Kosovo, que resultou num livro publicado em 2006 ("L'idéologie de notre temps, en tout cas en ce qui concerne la légitimation de la guerre, n'est plus le christianisme, ni la " mission civilisatrice " de la République, mais bien un certain discours sur les droits de l'homme et la démocratie, mêlés à une représentation particulière de la deuxième guerre mondiale. C'est à ce discours et à cette représentation qu'il faut s'attaquer si l'on veut construire une opposition radicale et sans complexe aux guerres actuelles et futures").
Com a Líbia, intensifica-se a utilização deste discurso para fins bélicos e intervencionistas. "Douze ans plus tard, c’est l’histoire du Kosovo qui se répète", afirmou Bricmont essa semana. Para o autor belga, a intervenção líbia não se funda somente da futura utilização do petróleo líbio - pois esse seria um argumento muito simplista -, mas trata-se duma última tentativa de os Estados Unidos da América assumirem a posição de líderes do mundo e de legitimarem a utilização de intervenções humanitárias, tão desgastadas pelos insucessos no Afeganistão e Iraque ("L’argument principal en faveur de la guerre, du point de vue des Etats-Unis, est que, si tout se passe vite et facilement, cela réhabilitera l’OTAN et l’ingérence humanitaire, dont l’image a été ternie par l’Irak et l’Afghanistan").
Um novo Kosovo é exatamente o que era preciso para o Imperialismo Humanitário. A articulação com a ONU foi, portanto, meticulosamente pensada pelos estrategistas do governo e da OTAN.
A América Latina, liderada pelo Brasil, propõe o caminho correto: a mediação numa perspectiva dialógica, o que é de plano rejeitado pelas potências ocidentais.
Os governos de esquerda latino-americanos querem a paz e o respeito à soberania nacional (algo elogiado por Bricmont: "la gauche d’Amérique Latine veut la paix et ils veulent empêcher l’intervention des Etats-Unis car ils savent qu’ils sont dans leur ligne de mire et que leur processus de transformation sociale exige d’abord et avant tout la paix et la souveraineté nationale"). Note que os BRICS (Brasil, Russia, Índia e China) votaram de forma articulada, mas sem força suficiente para criar uma efetiva oposição.
O mundo assiste ao patético declínio do Império americano (os "promotores da democracia e dos direitos humanos"), a maior potência bélica do mundo. Não há dúvidas que a intervenção na Líbia foi previamente planejada há algum tempo, por outros motivos. O discurso dos "direitos humanos" é um grande manto que tudo legitima, algo que precisa ser combatido. Afinal, se é para proteger de fato os direitos humanos (tal como proposta na belíssima Carta da ONU) devemos tutelá-los em todos os níveis, eliminando Guantánamo e encerrando a tortura de supostos "terroristas".
E mais: até quando o mundo vai aceitar que quinze países do Conselho de Segurança representem toda a "Comunidade Internacional"? Qual a legitimidade desta instituição hoje?
Uma pena que a proposta latino-americana não tenha sido adotada, a do mais amplo diálogo. A situação é caótica. A esquerda também foi vencida pelo discurso de que "centenas de líbios estão sendo fuzilados pelo regime de Gaddafi (ou Kadafi)". De fato, qualquer um se sensibilizaria com tal situação. Infelizmente ou felizmente - existem diversos pontos de análise -, a ofensiva internacional já está em curso.
Como bem avaliou o italiano Catona, a paz não serve às potências que, em concorrência entre si, querem retomar "seu lugar ao sol": "Esta guerra interna na Líbia foi alimentada pelas potências que hoje dizem querer trazer a paz e a democracia: aos insurrectos de Benghazi chegam armas, equipamentos e conselheiros militares das potências ocidentais. Alimenta-se a guerra civil para justificar a agressão externa. Velha história...".
Tudo está acontecendo tão rapidamente que é difícil avaliar os impactos e consequencias desses primeiros três meses vividos nesse ano.
Mesmo assim, é preciso um esforço para além de nossas atividades intelectuais cotidianas para pensar questões que fazem parte de nossa existência como, por exemplo, a questão do discurso retórico dos direitos humanos para legitimar intervenções militares, tal como na Líbia agora.
O importante é manter-se informado e sempre desconstruir os consensos fabricados num processo dialético. Não tenho dúvidas de que pensar hoje é, cada vez mais, um assombro subversivo. Entretanto, é o único caminho para a libertação do homem.
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